7 de agosto de 2012

20 anos da lei da reforma psiquiátrica do RS

20 anos da lei da reforma psiquiátrica do RS
 uma conquista que se faz no cotidiano

                                                        Rita de Cássia Maciazeki Gomes[1]



"Tô maluco da idéia
Guiando carro na contramão
Saí do palco e fui pra platéia
Saí da sala e fui pro porão"
Sérgio Sampaio

Há vinte anos, em 07 de agosto de 1992, vivenciamos um momento histórico com a aprovação da Lei Estadual nº 9.716. A referida lei em seu texto base dispõem sobre a Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul, determinando a substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral em saúde mental, determina as regras de proteção aos que padecem de sofrimento psíquico, especialmente quanto às internações psiquiátricas compulsórias[2].  O Rio Grande do Sul tornou-se assim pioneiro na aprovação desta importante legislação; pois  a Lei Nacional 10.216, só veio a ser sancionada no ano de 2001. A partir dessas importantes conquistas, quais os avanços e os desafios que marcaram estas duas décadas?
Se voltarmos um pouco no tempo e fizermos, um brevíssimo, exercício genealógico encontraremos movimentos de altos e baixos, na medida em que se constata que a implementação da legislação não é consenso. Pois, ainda é forte a bandeira daqueles que defendem a institucionalização da loucura, produtora de massificação e dor. Realidade essa, de todas aquelas pessoas que foram retiradas do convívio familiar para serem internadas em nome do seu próprio bem e daqueles com as quais conviviam. Levadas foram, para um espaço muitas vezes insalubre, desprovido de cuidado e apresentado como sua nova casa. Largadas a própria sorte, amparadas por doses de medicações que prometiam a cura e a solução para seus problemas, que infelizmente nunca chegaram. Não foram poucas as pessoas que se cansaram de esperar e cronificaram com o ar, com o cheiro, com o funcionamento do manicômio, e ninguém apareceu para buscá-las. A sociedade por sua vez, sensata, pacata e complacente concordava e dizia que era preciso ser assim. O que fazer? “Coitadinhos, melhor que fiquem internados (para sempre), em um espaço fechado, onde possam ser cuidados e fiquem em segurança (e nós também)!”
O mito do louco perigoso, daquele que tudo pode fazer e daí todos estão em risco não é de fato lembrança muito distante de nós. Então, para a proteção e bom funcionamento da sociedade a ameaça precisava ser afastada. A história nos conta que primeiro eram levados para hospitais gerais, onde se mesclavam a todos aqueles considerados perigosos ou não. Depois viu-se da necessidade da especialização do serviço. Com o advento da medicina, enquanto oráculo do saber sobre as patologias, o hospital psiquiátrico ganha notoriedade e a loucura passa a ser questão médica. Muitas foram as terapêuticas utilizadas, desde a laborterapia, o eletrochoque, os psicotrópicos de última geração, todos na tentativa constante de tornar os corpos dóceis, como já diria Foucault.
Eis que aparecerem os anormais! Pessoas que olharam esse modo de tratar com estranhamento e desnaturalização foram chamadas de loucas, de insanas. E, por sua vez, assumiram o slogan: “De perto ninguém é normal!”,  frase da música Vaca Profanam ,  de Caetano Veloso que embalou as campanhas do Movimento da Luta Antimanicomial. O Movimento ganhou as ruas com trabalhadores, familiares e usuários da saúde mental, na década 80. Luta essa que ficou conhecida como Movimento da Reforma Psiquiátrica, tendo como bandeiras a desinstitucionalização e desospitalização da loucura, bem como, a criação de serviços que fossem substitutivos ao modelo anterior. Surgem assim, os CAPS, as Moradias Protegidas, os Residenciais Terapêuticos, o Programa de Volta pra Casa.
Compreende-se que, apenas uma área do conhecimento e o ponto de vista do campo da saúde não são suficientes para compor estratégias eficazes para o atendimento. O desafio do trabalho com diferentes áreas do conhecimento, e mais, a interlocução entre saúde, educação, assistência social, geração de renda, habitação, lazer, cultura tornam-se fundamentais. Lembro aqui, de mais um slogan “Loucos pela Diversidade” da Campanha do Ministério da Saúde em parceria com o Ministério da Cultura, em 2007, discutindo a humanização na saúde mental.
Política Nacional de Humanização que respeitando as limitações e principalmente as diferenças do outro, que não sou eu, entende que do seu jeito, cada um tem seu modo de viver a vida. Com isso, não extingui-se aqui a importância da instauração de cuidado. Propõem-se em relação a linha de cuidado, que ela possa:
1-     Prever a escuta e o diálogo de modo a não ser algo forçado, puramente prescritivo, de como o outro deva viver a sua vida.
2-     Levar em conta o modo de ser de cada pessoa e, a partir daí, compor estratégias com ela no que dizem respeito a formulação de seu Plano Terapêutico Singular, ou seja, estratégias que priorizem o sujeito, em questão, e não puramente alternativas de como controlar uma patologia.
3-     Priorizar a atenção a vida humana em sua integralidade.
4-     Proporcionar a reflexão à medida que abrirmo-nos a diferença e estabelecemos trocas horizontais.
5-     Divulgar  que a reforma segue se constituindo no cotidiano, e faz-se necessário engajarmos nesta luta para, a partir daí, potencializamos a criação de um mundo onde caibam outros mundos, em especial aquele que é próprio de cada um de nós.
Vejam que esse modo de pensar o cuidado é extremamente recente na nossa história. E mais, não é algo dado e acabado, está em construção, e por vezes, não navega em águas tranquilas. Há muitos que não concordam com esta proposta e querem o retorno do modelo anterior. Pode-se afirmar, sem dúvida, que foi necessária uma boa dose de loucura para trazer a toma discussões dadas como óbvias no tratamento a pessoas com sofrimento psíquico para que se abrissem brechas a novas possibilidade de ver, olhar, viver e conviver com cada pessoa a partir da sua singularidade. E por fim,  podermos comemorar a implementação da Reforma Psiquiátrica que mais do que uma Lei siga viva no cotidiano.


[1]   Psicóloga, mestre em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, docente do curso de Psicologia da Faculdade Três de Maio – SETREM e IENH.
   [2] De acordo com  texto base da Lei Estadual nº 9.716, de 07 de agosto de 1992.

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